domingo, 16 de novembro de 2014

Carta Circular aos Consagrados e Consagradas do Magistério do Papa Francisco








ANO DA VIDA CONSAGRADA



ALEGRAI-VOS


« Queria dizer-vos uma palavra, e a palavra é alegria.
Onde quer que haja consagrados, aí está a alegria!
».
Papa Francisco

Caríssimos Irmãos e Irmãs,
1. «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo, nasce e renasce sem cessar a alegria » .
O início da Evangelii gaudium soa, na linha do magistério do papa Francisco, com surpreendente vitalidade, apelando ao mistério admirável da Boa-Nova que, ao ser acolhida no coração de uma pessoa, transforma a sua vida. É-nos contada a parábola da alegria: o encontro com Jesus acende em nós a beleza originária, a beleza do rosto no qual resplandece a glória do Pai (cf. 2Cor 4, 6), no frutto da alegria.
Esta Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica convida-vos a refletir sobre o tempo de graça que nos é dado viver, sobre o especial convite que o Papa dirige à vida consagrada.
Acolher tal magistério significa renovar a vida segundo o Evangelho, não no sentido de radicalidade entendida como modelo de perfeição e, muitas vezes, de separação, mas no sentido de adesão toto corde ao encontro de salvação que transforma a vida: « Trata-se de deixar tudo para seguir o Senhor. Não, não quero dizer radical. A radicalidade evangélica não é só para os religiosos: a todos se exige. Mas os religiosos seguem o Senhor de modo especial, de modo profético. Espero de vós esse testemunho. Os religiosos devem ser homens e mulheres capazes de despertar o mundo ».
Dentro das limitações humanas, nas preocupações do dia a dia, os consagrados e as consagradas vivem a fidelidade, dão razão da alegria que vivem, convertem-se em testemunho luminoso, anúncio eficaz, companhia e proximidade para com as mulheres e homens do nosso tempo que procuram a Igreja como casa paterna. Francisco de Assis, tomando o Evangelho como forma de vida, « fez crescer a fé, renovou a Igreja; e, ao mesmo tempo, renovou a sociedade, tornando-a mais fraterna, mas sempre com o Evangelho, com o testemunho. Pregai sempre o Evangelho e, se for necessário, pregai-o também com as palavras! ».
Muitas são as sugestões que nascem da escuta das palavras do Santo Padre, mas interpela-nos particularmente a simplicidade absoluta com a qual o papa Francisco propõe o seu magistério, conformando-se com a genuinidade desarmante do Evangelho. Palavra sine glossa, espalhada com o gesto amplo do bom semeador que, cheio de confiança, não faz discriminação de terreno.
Um convite autorizado que nos é dirigido com plena confiança; um convite a renunciarmos às argumentações institucionais e às justificações pessoais; uma palavra provocadora que questiona o nosso viver, por vezes entorpecido e sonolento, e com frequência indiferente ao desafio: « Se tivésseis fé como um grão de mostarda » (Lc 17, 5). Um convite que nos incentiva a elevar o espírito para darmos razão ao Verbo que habita no meio de nós, ao Espírito que cria e renova constantemente a sua Igreja.
Esta Carta surge a partir deste convite e pretende dar início a uma reflexão partilhada, ao mesmo tempo que se apresenta como simples meio para um confronto leal entre o Evangelho e Vida. Este Dicastério desencadeia assim um percurso comum, lugar de reflexão fraterna, pessoal, institucional, rumo a 2015, ano que a Igreja dedica à vida consagrada. Alimentamos o desejo de que ousadas decisões evangélicas venham a ser postuladas e se produzam frutos de renovação e de fecunda alegria: «O primado de Deus é, para a existência humana, plenitude de significado e de alegria, porque o ser humano é feito para Deus e não descansa enquanto não encontrar nele a paz » .

Alegrai-vos com Jerusalém, rejubilai com ela, vós todos que a amais; regozijai-vos com ela, vós todos que estáveis de luto por ela.
Porque assim diz o Senhor: « Vou fazer com que a paz corra para Jerusalém como um rio, e a riqueza das nações, como uma torrente transbordante. Os seus filhinhos serão levados ao colo e acariciaclos sobre os seus regaços.
Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei: em Jerusalém sereis consolados.
Ao verdes isto, os vossos corações pulsarão de alegria, e os vossos ossos retomarão vigor, como erva fresca. A mão do Senhor manifestar-se-á aos seus servos ».
Isaías 66, 10.12-14.

2. Com a palavra alegria (em hebraico: s´imh. â/s´amah. , gyl) a Sagrada Escritura pretende exprimir uma série de experiências coletivas e pessoais, particularmente ligadas ao culto religioso e às festas, e destinadas a reconhecer o sentido da presença de Deus na história de Israel.
Na Bíblia, há treze verbos e substantivos diferentes para descrever a alegria de Deus, das pessoas e da própria criação, no diálogo da salvação.
No Antigo Testamento, é nos Salmos e no profeta Isaías que estes termos aparecem mais vezes. Com uma variação linguística criativa e original, surge com frequência o convite à alegria e proclama-se a alegria da proximidade de Deus, alegria por tudo o que Ele criou e fez. Nos Salmos encontramos, centenas de vezes, as expressões mais eficazes para indicar, juntamente com a alegria, quer o fruto da presença benevolente de Deus e os ecos jubilosos que esta provoca, quer a afirmação da grande promessa que ilumina o horizonte futuro do povo. No que diz respeito ao profeta Isaías, a segunda e a terceira partes do seu livro estão, precisamente, ritmadas por esse frequente apelo à alegria, orientado para o futuro: será superabundante (cf. Is 9, 2); o céu, o deserto e a terra exultarão de alegria (Is 35, 1; 44, 23; 49, 13); os prisioneiros libertados chegarão a Jerusalém, gritando de alegria (Is 35,9s.; 51, 11).
No Novo Testamento, o termo mais frequente está ligado à raiz char (chàirein, charà), mas também se encontram outros termos como agalliáomai, euphrosy´ne, que geralmente comportam um júbilo total, abarcando simultaneamente o passado e o futuro. A alegria é o dom messiânico por excelência, como o próprio Jesus promete: «A minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa » (Jo 15, 11; 16, 24; 17, 13). Lucas, a partir dos acontecimentos que antecedem o nascimento do Salvador, assinala o jubiloso difundir-se da alegria (cf. Lc 1, 14.44.47; 2, 10; cf. Mt 2, 10). Esta acompanha a difusão da Boa-Nova como um efeito que se expande (cf. Lc 10, 17; 24, 41.52) e que é sinal típico da presença e implantação do Reino (cf. Lc 15, 7.10.32; At 8, 39; 11, 23; 15, 3; 16, 34; cf. Rm 15, 10-13; etc.).
Para Paulo, a alegria é um fruto do Espírito (cf. Gl 5, 22) e uma nota típica e estável do Reino (cf. Rm 14, 17), que se consolida também através da tribulação e das provas (cf. 1Ts 1, 6). Na oração, na caridade, na constante ação de graças deve encontrar-se a fonte da alegria (cf. 1Ts 5, 16; Fl 3, 1; Cl 1,11s.): nas tribulações, o Apóstolo dos Gentios sente-se cheio de alegria e participante da glória que todos esperamos (cf. 2Cor 6, 10; 7, 4; Cl 1, 24). O triunfo final de Deus e as núpcias do Cordeiro completarão toda a alegria e júbilo (cf. Ap 19, 7), fazendo estalar um Aleluia cósmico (Ap 19, 6).
Vejamos o sentido do texto: « Alegrai-vos com Jerusalém; rejubilai com ela, vós todos que a amais. Regozijai-vos com ela » (Is 66, 10). Trata-se do final da terceira parte do profeta Isaías; os capítulos 65 e 66 de Isaías estão intimamente unidos, completando-se mutuamente, como era evidente já na conclusão da segunda parte de Isaías (capítulos 54 e 55).
Em ambos os capítulos é evocado o passado, por vezes até com imagens cruas: são um convite a esquecê-lo, porque Deus quer fazer brilhar uma nova luz, uma confiança que curará infidelidades e crueldades sofridas. A maldição, fruto da não observância da Aliança, desaparecerá, porque Deus quer fazer de « Jerusalém um motivo de júbilo, e do seu povo uma fonte de alegria » (cf. Is 65, 18). Saberão por experiência que a resposta de Deus virá ainda antes de a súplica ser formulada (cf. Is 65, 24). Este é o contexto que continuará também nos primeiros versículos de Isaías 66, aflorando aqui e além, e evidenciando obtusidade de coração e de ouvidos perante a bondade do Senhor e a sua Palavra de esperança.
É muito sugestiva a imagem de Jerusalém mãe, inspirada nas promessas de Isaías 49, 18-29 e 54, 1-3: a terra de Judá enche-se com os que regressam da dispersão, depois da humilhação. Dir-se-ia que os rumores da « libertação » « engravidaram » Sião de nova vida e esperança. Deus, o Senhor da vida, levará até ao fim a gestação, fazendo nascer sem sofrimento os novos filhos. Assim, Sião-mãe fica rodeada de novos filhos, amamentando-os a todos com abundância e ternura. Uma imagem dulcíssima, fascinante para Santa Teresa de Lisieux, que nela encontrou uma decisiva chave de interpretação da sua espiritualidade.
Um conjunto de vocábulos intensos: alegrai-vos, exultai, transbordai; e também consolações, delícia, abundância, prosperidade, carícias, etc. A relação de fidelidade e de amor tinha falhado, caíra-se na tristeza e na esterilidade; agora, o poder e a santidade de Deus tornavam a dar sentido e plenitude de vida e de felicidade. Estas exprimem-se em termos que têm a sua raiz nos afetos de todo o ser humano, e que provocam sensações únicas de ternura e segurança.
Delicado e verdadeiro perfil de um Deus que vibra com entranhas maternas e com intensas emoções contagiantes; uma alegria vinda do coração (cf. Is 66, 14) que, a partir de Deus – rosto materno e braço que ergue –, e se difunde num povo desfigurado por mil humilhações, e, por isso, com ossos frágeis; uma transformação gratuita que festivamente se estende a « novos céus e nova terra » (cf. Is 66, 22), para que todos os povos conheçam a glória do Senhor, fiel e redentor.

3. « Esta é a beleza da consagração: é a alegria, a alegria... ». A alegria de levar a todos a consolação de Deus. São palavras do papa Francisco no encontro com os seminaristas, os noviços e noviças. « Não há santidade na tristeza », continua o Santo Padre, « não andeis tristes como os que não têm esperança », escrevia São Paulo (1Ts 4, 13).
A alegria não é um adorno inútil, mas exigência e fundamento da vida humana. Nas preocupações de cada dia, todo o homem e mulher procura alcançar a alegria e permanecer nela com todo o seu ser.
No mundo há, muitas vezes, um déficit de alegria. Não somos chamados a realizar gestos épicos nem a proclamar palavras altissonantes, mas a testemunhar a alegria que brota da certeza de sentir-se amado, da confiança de ser salvo.
A nossa memória curta e a nossa experiência fraca impedem-nos muitas vezes de procurar as « terras da alegria », onde saborear o reflexo de Deus. Temos mil e um motivos para viver na alegria. A sua raiz alimenta-se da escuta crente e perseverante da Palavra de Deus. Na escola do Mestre, escuta-se o « esteja em vós a minha alegria e a vossa alegria seja completa » (Jo 15, 11), e treinamo-nos com exercícios de alegria perfeita.
«A tristeza e o medo devem dar lugar à alegria: “Alegrai-vos... exultai... transbordai de alegria” – diz o profeta (66, 10). É um grande convite à alegria. […] Cada cristão, mas sobretudo nós, somos chamados a levar esta mensagem de esperança, que dá serenidade e alegria: a consolação de Deus, a sua ternura para com todos. Mas só o poderemos fazer, se experimentarmos, nós primeiro, a alegria de ser consolados por Ele, de ser amados por Ele. […] Existem pessoas consagradas que têm medo da consolação de Deus e se amofinam, porque têm medo dessa ternura de Deus. Mas não tenhais medo. Não tenhais medo. O nosso Deus é o Senhor da consolação, o Senhor da ternura. O Senhor é pai e Ele disse que procederá conosco como faz uma mãe com o seu filho – com ternura. Não tenhais medo da consolação do Senhor ».

4. «Ao chamar-vos, Deus diz-vos: “És importante para mim, Eu amo-te; conto contigo”. Jesus diz isto a cada um de nós! Daqui nasce a alegria! A alegria do momento no qual Jesus olhou para mim. Compreender e sentir isto é o segredo da nossa alegria. Sentir-se amado por Deus, sentir que, para Ele, nós não somos números, mas pessoas; e sentir que é Ele que nos chama ».
O papa Francisco leva-nos a olhar para o fundamento espiritual da nossa humanidade, para vermos o que nos é dado gratuitamente por livre soberania divina e livre resposta humana:
« Então Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu: “Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me” » (Mc 10, 21).
O Papa faz memória: «Na Última Ceia, Jesus dirige-se aos Apóstolos com estas palavras:
“Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi” (Jo 15, 16); estas palavras recordam a todos, não só a nós sacerdotes, que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus. Foi Cristo que vos chamou a segui-lo na vida consagrada, e isto significa realizar constantemente um “êxodo” de vós mesmos para centrardes a vossa existência em Cristo e no seu Evangelho, na vontade de Deus, despojando-vos dos vossos projetos, a fim de poderdes afirmar com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20) ».
O Papa convida-nos a uma peregrinação ao passado, um caminho sapiencial para nos encontrarmos nas estradas da Palestina ou junto da barca do humilde pescador da Galileia; convida-nos a contemplar os inícios de um caminho, ou melhor, de um acontecimento que, tendo sido inaugurado por Cristo, nos leva a deixar as redes na margem, o banco dos impostos na beira da estrada, as veleidades do zelote entre as intenções do passado. Todos meios desapropriados para estar com Ele.
Convida-nos a parar algum tempo, como peregrinação interior, diante do horizonte da primeira hora, onde os espaços têm o calor da relação amiga, a inteligência é levada a abrir-se ao mistério, a decisão estabelece que é bom pôr-se no seguimento daquele Mestre que só tem « palavras de vida eterna » (cf. Jo 6, 68). Convida-nos a fazer de toda a « existência uma peregrinação de transformação no amor ».
O papa Francisco chama-nos a deter o nosso espírito no fotograma da partida: «A alegria do momento no qual Jesus olhou para mim»; a evocar significados e exigências subentendidos na nossa vocação: «É a resposta a um chamamento, a um chamamento de amor ». Estar com Cristo requer que partilhemos com Ele a vida, opções, obediência de fé, bem-aventurança dos pobres, radicalidade do amor.
Trata-se de renascer vocacionalmente. « Convido todo o cristão […] a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar dia a dia sem cessar ».
Paulo leva-nos a essa visão fundamental: « Ninguém pode pôr outro alicerce diferente do que já foi posto » (1Cor 3, 11). O termo vocação indica este dado gratuito, como um depósito de vida que não cessa de renovar a humanidade e a Igreja no mais profundo do seu ser.
Na experiência da vocação, o próprio Deus é o sujeito misterioso do chamamento. Ouvimos uma voz que nos chama à vida e ao discipulado pelo Reino. O papa Francisco, ao recordá-lo – « tu és importante para mim» –, usa o discurso direto, na primeira pessoa, de modo a que a consciência desperta. Chama-me a ser consciente da minha ideia, do meu juízo, para pedir comportamentos coerentes com a consciência de mim próprio, com o chamamento que sinto, o meu chamamento pessoal: « Gostaria de dizer a quantos se sentem indiferentes a Deus, à fé; a quantos estão distantes de Deus, ou a quem o abandonou; também a nós, com as nossas “distâncias” e os nossos “abandonos” de Deus, talvez pequenos, mas demasiado frequentes na vida quotidiana: Olha no fundo do teu coração, olha no íntimo de ti mesmo e interroga-te: tens um coração que aspira a algo de grande, ou um coração entorpecido pelas coisas? O teu coração conservou a inquietação da procura, ou permitiste que ele fosse sufocado pelos bens que, no fim, o atrofiam? ».
A relação com Jesus Cristo precisa de ser alimentada com a inquietação da procura; torna-nos conscientes da gratuidade do dom da vocação e ajuda-nos a justificar as razões que levaram à opção inicial, e que permanecem na perseverança: « Deixar-se conquistar por Cristo significa estar sempre orientado para aquilo que está à minha frente, rumo à meta que é Cristo (cf. Fl 3, 14) ». Permanecer constantemente à escuta de Deus requer que estas perguntas se tornem as coordenadas que marcam o nosso tempo quotidiano.
Este mistério indizível que trazemos dentro de nós e que participa do inefável mistério de Deus só pode ser interpretado à luz da fé: «A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama pelo nome » e, « enquanto resposta a uma Palavra que precede, será sempre um ato de memória; contudo, esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de uma promessa, torna-se capaz de se abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho ». «A fé contém precisamente a memória da história de Deus conosco; a memória do encontro com Deus, que toma a iniciativa, que cria e salva, que nos transforma; a fé é memória da sua Palavra que inflama o coração, das suas ações salvíficas, pelas quais nos dá vida, purifica, cuida de nós e alimenta. […] Quem traz em si a memória de Deus, deixa-se guiar pela memória de Deus em toda a sua vida, e sabe despertá-la no coração dos outros ». Memória de ser chamado aqui e agora.

5. O Papa pede-nos para relermos a nossa história pessoal e a verificarmos no olhar de amor de Deus, porque, se a vocação é sempre iniciativa sua, cabe-nos a livre adesão à economia divino-humana, como relação de vida no ágape, caminho de discipulado, « luz no caminho da Igreja ». Na vida no Espírito não há tempos acabados; ela abre-se constantemente ao mistério quando faz discernimento para conhecer o Senhor e captar a realidade a partir dele. Ao chamar-nos, Deus faz-nos entrar no seu repouso e pede-nos que repousemos nele, como contínuo processo de conhecimento de amor. Ecoa em nós a Palavra « andas inquieta e preocupada com muitas coisas » (Lc 10, 41). Na via amoris progride-se renascendo: a velha criatura renasce para uma nova forma. « Por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura » (2Cor 5, 17).
O papa Francisco dá um nome a este renascer: « Esta estrada tem um nome, um semblante: o rosto de Jesus Cristo. É Ele que nos ensina a tornarmo-nos santos. É Ele que, no Evangelho, nos indica o caminho: a via das bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-12). Esta é a vida dos Santos: pessoas que, por amor a Deus, na sua vida não lhe puseram condições ».
A vida consagrada é chamada a encarnar a Boa-Nova, no seguimento de Cristo, o Crucificado ressuscitado; a fazer próprio o « modo de existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado em relação ao Pai e aos irmãos ». Concretamente, é assumir o seu estilo de vida, adotar as suas atitudes interiores, deixar-se invadir pelo seu espírito, assimilar a sua lógica surpreendente e a sua escala de valores, partilhar os seus risos e as suas esperanças: « Guiados pela certeza humilde e feliz de quem foi encontrado, alcançado e transformado pela Verdade que é Cristo, e não pode deixar de anunciá-la ».
O permanecer em Cristo permite-nos colher a presença do Mistério que habita em nós e nos dilatar o coração segundo a medida do seu coração de Filho. Quem permanece no seu amor, como o ramo ligado à videira (cf. Jo 15, 1-8), entra na familiaridade com Cristo e produz fruto: « Permanecer em Jesus! Permanecer ligado a Ele, dentro dele, com Ele, falando com Ele ».
« Cristo é o selo na fronte, é o selo no coração: na fronte, porque o professamos sempre; no coração, porque o amamos sempre; é o selo no braço, porque atuamos sempre ». A vida consagrada, com efeito, é um constante chamamento a seguir Cristo e a imitá-lo. « Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total entrega, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal ».
O encontro com o Senhor põe-nos em movimento, impele-nos a sair da autorreferencialidade . A relação com o Senhor não é estática nem intimista: «Quem coloca Cristo no centro da sua vida, descentraliza-se! Quanto mais te unes a Jesus e mais Ele se torna o centro da tua vida, tanto mais Ele te faz sair de ti mesmo, te descentraliza e abre aos outros ». « Não estamos no centro; estamos, por assim dizer, “deslocados”, estamos ao serviço de Cristo e da Igreja ».
A vida cristã é determinada por verbos de movimento, mesmo quando vivida na dimensão monástica e contemplativo-claustral; é uma contínua procura.
« Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se estiver convencido, por experiência própria, de que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não o conhecer; não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando; não é a mesma coisa poder escutá-lo ou ignorar a sua Palavra; não é a mesma coisa poder contemplá-lo, adorá-lo, descansar nele, ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho, em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena, e, com Ele, é mais fácil encontrar sentido para cada coisa ».
O papa Francisco exorta-nos à inquietação da procura, como aconteceu com Agostinho de Hipona: uma « inquietação do coração que o leva ao encontro pessoal com Cristo; que o leva a compreender que aquele Deus que ele procurava longe de si é o Deus próximo de cada ser humano, o Deus próximo do nosso coração, mais íntimo a nós do que nós mesmos ». É uma procura que continua: « Agostinho não se detém, não se acomoda, não se fecha em si mesmo, como aquele que já chegou à meta, mas continua o caminho. A inquietação da busca da verdade, da busca de Deus, torna-se inquietação de o conhecer cada vez mais e de sair de si mesmo para o dar a conhecer aos outros. É precisamente a inquietação do amor ».

6. Quem encontrou o Senhor e o segue com fidelidade é um mensageiro da alegria do Espírito.
« Só graças a esse encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade ». Quem é chamado é convocado para si mesmo, isto é, para o seu poder ser. Talvez possamos dizer que a crise da vida consagrada passa também pela incapacidade de reconhecer esse profundo chamamento, mesmo naqueles que já vivem essa vocação.
Vivemos uma crise de fidelidade, entendida como adesão consciente a um chamamento que é um percurso, um caminho, desde o seu início misterioso até ao seu misterioso fim.
Talvez se esteja também numa crise de humanização. Estamos a viver os limites de uma coerência total, feridos pela incapacidade de realizar, no tempo, a nossa vida como vocação unitária e caminho fiel.
Um caminho quotidiano, pessoal e fraterno, marcado pelo descontentamento, pela amargura que nos fecha na tristeza, como que numa permanente saudade, por estradas inexploradas e sonhos por realizar, torna-se um caminho solitário. A nossa vida, chamada à relação na construção do amor, pode transformar-se numa charneca desabitada. Somos convidados, em qualquer idade, a revisitar o centro profundo da vida pessoal, onde encontram significado e verdade as motivações do nosso viver com o Mestre, discípulos e discípulas do Mestre.
A fidelidade é consciência do amor que nos orienta para o Tu de Deus e para qualquer outra pessoa, de maneira constante e dinâmica, enquanto sentimos em nós a vida do Ressuscitado:
«Os que se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento ».
O discipulado fiel é graça e exercício de amor, exercício de caridade oblativa: « Quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor ».
Perseverar até ao Gólgota, sentir as dilacerações das dúvidas e do renegar, alegrar-se com a maravilha e com a estupefação da Páscoa até à manifestação do Pentecostes e à evangelização aos povos, são etapas da fidelidade alegre porque quenótica, vivida durante a vida inteira, mesmo na prova do martírio e, ao mesmo tempo, participante da vida ressuscitada de Cristo: «É da Cruz, supremo ato de misericórdia e de amor, que se renasce como nova criatura (Gl 6, 15) ».
No lugar teologal em que Deus, revelando-se, nos revela a nós mesmos, o Senhor pede-nos, portanto, para voltarmos a procurar, fides quaerens: « Procura a justiça, a fé, o amor e a paz com todos os que, de coração puro, invocam o Senhor » (2Tm 2, 22).
A peregrinação interior começa na oração: «A primeira coisa necessária para um discípulo é estar com o Mestre, ouvi-lo, aprender dele. E isto é sempre válido, é um caminho que dura a vida inteira. […] Se, no nosso coração, não há o calor de Deus, do seu amor, da sua ternura, como podemos nós, pobres pecadores, inflamar o coração dos outros? ». Este itinerário dura a vida inteira, enquanto o Espírito Santo, na humildade da oração, nos convence do senhorio de Cristo em nós: « Todos os dias, o Senhor chamanos a segui-lo, corajosa e fielmente; fez-nos o grande dom de nos escolher como seus discípulos; convida-nos a anunciá-lo jubilosamente como o Ressuscitado, mas pede-nos para o fazermos, no dia a dia, com a palavra e o testemunho da nossa vida, no quotidiano. O Senhor é o único, o único Deus da nossa vida e convida-nos a despojar-nos dos numerosos ídolos e adorá-lo só a Ele ».
O Papa apresenta a oração como a fonte da fecundidade missionária: « Cultivemos a dimensão contemplativa, mesmo no turbilhão dos compromissos mais urgentes e pesados. E quanto mais a missão vos chamar para irdes às periferias existenciais, tanto mais o vosso coração se mantenha unido ao de Cristo, cheio de misericórdia e de amor ».
O estar com Jesus leva a ter um olhar contemplativo da história, para vermos e escutarmos em toda a parte a presença do Espírito e, de forma privilegiada, discernirmos a sua presença, a fim de vivermos o tempo como tempo de Deus.
Quando falta um olhar de fé, « a vida perde gradualmente sentido, o rosto dos irmãos torna-se opaco, impossibilitando descobrir nele o rosto de Cristo; os acontecimentos da história tornam-se ambíguos, senão mesmo vazios de esperança».
A contemplação abre-nos à atitude profética. O profeta é um homem « que tem os olhos penetrantes e que escuta e diz as palavras de Deus; […] um homem de três tempos: promessa do passado, contemplação do presente, coragem para indicar o caminho do futuro ».
Por fim, a fidelidade no discipulado passa e é comprovada pela experiência da fraternidade, lugar teológico, no qual somos chamados a apoiar-nos no sim jubiloso do Evangelho: «É a Palavra de Deus que suscita a fé, que a alimenta e regenera. É a Palavra de Deus que sensibiliza os corações, que os converte a Deus e à sua lógica, que é tão diferente da nossa; é a Palavra de Deus que renova continuamente as nossas comunidades ».
O Papa convida-nos, portanto, a renovar e qualificar com alegria e paixão a nossa vocação, porque o ato totalizante do amor é um processo constante: « Amadurece, amadurece, amadurece », num progresso permanente em que o sim da nossa vontade à Sua une vontade, intelecto e sentimento. «O amor nunca está “concluído” e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si próprio ».


Consolai, consolai o meu povo,
diz o vosso Deus.
Falai ao coração de Jerusalém.
Isaías 40, 1-2
À escuta
7. Com uma peculiaridade estilística, que voltará a encontrar-se mais adiante (cf. Is 51, 17; 52, 1: « Desperta, desperta! »), os oráculos da segunda parte de Isaías (40-55) lançam o apelo a ir em ajuda de Israel exilado, que tende a fechar-se no vazio de uma memória falhada. O contexto histórico pertence claramente à fase do prolongado exílio do povo em Babilônia (587-538 a.C.), com toda a consequente humilhação e o sentido de impotência daí resultante. Todavia, a desagregação do Império Assírio sob a pressão da nova potência emergente, a persa, guiada pelo astro nascente que era Ciro, leva o profeta a intuir que poderia vir daí uma libertação inesperada; o que, de facto, sucederá. O profeta, sob a inspiração de Deus, dá voz pública a essa possibilidade, interpretando os movimentos políticos e militares como ação guiada misteriosamente por Deus através de Ciro, e proclama que a libertação está próxima e o regresso à terra dos pais está iminente.
As palavras que Isaías emprega – consolai... falai ao coração – encontram-se com uma certa frequência no Antigo Testamento; têm especial relevância as passagens onde se encontram diálogos de ternura e afeto. Como quando Rute reconhece que Booz « a consolou e lhe falou ao coração » cf. Rt 2, 12); ou então, na famosa página ele Oséias, que diz à sua esposa (Gomer) querer atraí-la ao deserto para lhe « falar ao coração » (cf. Os 2, 16-17), em ordem a uma nova estação de fidelidade. Mas também há outros paralelismos semelhantes, como o diálogo de Siquém, filho de Hamor, enamorado de Dina (cf. Gn 34, 1-5) ou o do levita de Efraim, que fala à concubina que o abandonou (cf. Jz 19, 3).
Trata-se, portanto, de uma linguagem que deve ser interpretada no contexto do amor, e não do encorajamento; portanto, ação e palavra ao mesmo tempo delicadas e encorajadoras, mas que aludem aos laços afetivos e intensos de Deus, « esposo » de Israel. E a consolação deve ser epifania de uma pertença recíproca, jogo de intensa empatia, de comoção e ligação vital.
Não são, portanto, palavras superficiais e adoçadas, mas Misericórdia e visceralidade, preocupação, abraço que fortalece e paciente proximidade para reencontrar as estradas da confiança.

8. « Hoje, as pessoas precisam certamente de palavras, mas sobretudo têm necessidade de quem testemunhe a misericórdia, a ternura do Senhor que aquece o coração, desperta a esperança, atrai para o bem. A alegria de levar a consolação de Deus! ».
O papa Francisco confia aos consagrados e consagradas essa missão: encontrar o Senhor que nos consola como uma mãe, e consola o povo de Deus. Da alegria do encontro com o Senhor e do seu chamamento brota o serviço na Igreja, a missão: levar aos homens e mulheres do nosso tempo a consolação de Deus; testemunhar a sua misericórdia.
Na visão de Jesus, a consolação é dom do Espírito, o Paráclito, o Consolador que nos consola nas provas e acende uma esperança que não desilude. Assim, a consolação cristã torna-se conforto, encorajamento, esperança: é presença operante do Espírito (cf. Jo 14, 16-17), fruto do Espírito, e o «fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança » (Gl 5, 22).
Num mundo que vive de desconfiança, de desânimo e depressão, numa cultura em que os homens e mulheres se deixam levar por fragilidades e fraquezas, por individualismos e interesses pessoais, é-nos pedido que introduzamos a confiança na possibilidade de uma felicidade verdadeira, de uma esperança possível, que não se apoie unicamente nos talentos, nas qualidades, no saber, mas em Deus. Todos podem encontrá-lo; basta procurá-lo de coração sincero.
Os homens e mulheres do nosso tempo esperam palavras de consolação, proximidade, perdão, alegria verdadeira. Somos chamados a levar a todos o abraço de Deus, que se inclina sobre nós com ternura de mãe: consagrados, sinal de humanidade plena, facilitadores e não controladores da graça, marcados pelo sinal da consolação.

9. Testemunhas de comunhão para além das nossas maneiras de ver e dos nossos limites, somos, portanto, chamados a levar o sorriso de Deus; e a fraternidade é o primeiro e mais credível Evangelho que podemos contar. Pede-se-nos para humanizar as nossas comunidades: « Cuidai da amizade entre vós, da vida de família, do amor entre vós. E que o mosteiro não seja um purgatório, mas uma família. Os problemas existem e existirão, mas como se faz numa família, com amor, procurai uma solução com caridade; não destruais esta em nome daquela; que não haja competição. Cuidai da vida de comunidade, pois quando a vida de comunidade é vida de família, o Espírito Santo encontra-se no seio da comunidade. Sempre com um coração grande. Deixai passar, não vos vanglorieis, suportai tudo, sorri com o coração. E o sinal disto é a alegria »
A alegria consolida-se na experiência da fraternidade, qual lugar teológico, onde cada um é responsável da fidelidade ao Evangelho e do crescimento de cada um. Quando uma fraternidade se alimenta do mesmo Corpo e Sangue de Jesus, reúne-se à volta do Filho de Deus para partilhar o caminho de fé guiado pela Palavra, torna-se uma só coisa com Ele; é uma fraternidade em comunhão, que sente o amor gratuito e vive em festa, livre, alegre, cheia de coragem.
«Uma fraternidade sem alegria é uma fraternidade que se apaga. […] Uma fraternidade rica de alegria é um verdadeiro dom do Alto para os irmãos que sabem pedi-lo e que sabem aceitar-se uns aos outros, empenhando-se na vida fraterna com confiança na ação do Espírito ».
No tempo em que a fragmentação leva a um individualismo estéril e de massa, e a fraqueza das relações desagrega e asfixia a atenção pelo humano, somos convidados a humanizar as relações de fraternidade para favorecer a comunhão dos espíritos e dos corações ao estilo do Evangelho, porque « existe uma comunhão de vida entre todos aqueles que pertencem a Cristo. Uma comunhão que nasce da fé » e que faz da « Igreja, na sua verdade mais profunda, comunhão com Deus, familiaridade com Deus, comunhão de amor com Cristo e com o Pai no Espírito Santo, que se prolonga numa comunhão Fraterna ».
Para o papa Francisco, o selo da fraternidade é a ternura, uma « ternura eucarística », porque « a ternura faz-nos bem ». A fraternidade tem « uma enorme força de convocação. […] A fraternidade religiosa, mesmo com todas as diferenças possíveis, é uma experiência de amor que ultrapassa os conflitos ».

10. Somos chamados a realizar um êxodo de nós mesmos, num caminho de adoração e de serviço. « Sair pela porta para procurar e encontrar! Ter a coragem de ir contra a corrente dessa cultura eficientista, dessa cultura da rejeição. O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade e a fraternidade, são os elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana. Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro! Quero-vos quase obsessivos neste aspecto. E fazê-lo sem ser presunçosos »].
«O fantasma que se deve combater é a imagem da vida religiosa entendida como refúgio e conforto face a um mundo exterior difícil e complexo ». O Papa exorta-nos a « sair do ninho », para habitarmos na vida dos homens e mulheres do nosso tempo, e a nos entregarmos a Deus e ao próximo.
«A alegria nasce da gratuidade de um encontro! […] E a alegria do encontro com Ele e do seu chamamento faz com que não nos fechemos, mas que nos abramos; leva ao serviço na Igreja. São Tomás dizia: “Bonum est diffusivum sui” (o bem difunde-se). E a alegria também se difunde. Não tenhais medo de mostrar a alegria de haverdes respondido ao chamamento do Senhor, à sua escolha de amor, e de testemunhar o seu Evangelho no serviço à Igreja. E a alegria, a verdadeira alegria, é contagiosa; contagia... faz-nos ir em frente ».
Perante o testemunho contagioso de alegria, de serenidade, de fecundidade, o testemunho da ternura e do amor, da caridade humilde, sem prepotência, muitos sentem a necessidade de vir ver [60].
Várias vezes o papa Francisco indicou o caminho da atração, do contágio, como caminho para fazer crescer a Igreja, caminho da nova evangelização. «A Igreja deve atrair. Despertai o mundo! Sede testemunhas de um modo diferente de fazer, de agir, de viver! É possível viver diversamente neste mundo. […] Eu espero de vós um tal testemunho ».
Confiando-nos a missão de despertar o mundo, o Papa impele-nos a encontrar as histórias dos homens e mulheres de hoje à luz de duas categorias pastorais, que têm as suas raízes na novidade do Evangelho: a proximidade e o encontro, duas modalidades, através das quais o próprio Deus se revelou na história a ponto de encarnar.
Na estrada de Emaús, como Jesus com os discípulos, acolhamos na companhia quotidiana as alegrias e dores das pessoas, dando « calor ao coração », esperando com ternura os cansados, os fracos, para que o caminho feito em comum tenha em Cristo luz e significado.
O nosso caminho « amadurece até à paternidade pastoral, até à maternidade pastoral e, quando um sacerdote não é pai da sua comunidade, quando uma religiosa não é mãe de todos aqueles com os quais trabalha, torna-se triste. Eis o problema. Por isso vos digo: a raiz da tristeza na vida pastoral consiste precisamente na falta de paternidade e maternidade, que vem do viver mal esta consagração; esta, pelo contrário, deve-nos conduzir à fecundidade ».

11. Ícones vivos da maternidade e da proximidade da Igreja, vamos ao encontro dos que esperam a Palavra da consolação, inclinando-nos com amor materno e espírito paterno sobre os pobres e os fracos.
O Papa convida-nos a não privatizar o amor, mas, com a inquietação de quem procura, « procurar sempre, sem tréguas, o bem do outro, da pessoa amada ».
A crise de sentido do homem moderno e a crise económica e moral da sociedade ocidental e das suas instituições não são um acontecimento passageiro dos tempos em que vivemos, mas desenham um momento histórico de excepcional importância. Somos chamados então, como Igreja, a sair para ir às periferias geográficas, urbanas e existenciais – as do mistério do pecado, da dor, das injustiças, da miséria –, aos lugares recônditos da alma, onde cada pessoa experimenta a alegria e o sofrimento do viver « Vivemos numa cultura do desencontro, uma cultura da fragmentação, uma cultura na qual o que não me serve é jogado fora […]. Hoje, encontrar um sem-abrigo morto de frio não é notícia ». «A pobreza é uma categoria teologal porque o Filho de Deus humilhou-se, para caminhar pelas estradas. […] Uma Igreja pobre para os pobres começa por dirigir-se à carne de Cristo. Se nos fixarmos na carne de Cristo, começamos a compreender qualquer coisa, a compreender o que é esta pobreza, a pobreza do Senhor ». Viver a bem-aventurança dos pobres significa ser sinal de que a angústia da solidão e do limite é vencida pela alegria de quem é verdadeiramente livre em Cristo e aprendeu a amar.
Durante a sua visita pastoral a Assis, o papa Francisco perguntava de que devia despojar-se a Igreja. E respondia: «De qualquer ação que não é para Deus, que não é de Deus; do medo de abrir as portas para ir ao encontro de todos, sobretudo dos mais pobres, dos necessitados, dos distantes, sem esperar; certamente, não para se perder no naufrágio do mundo, mas para levar com coragem a luz de Cristo, a luz do Evangelho, também à escuridão, aonde não se vê, aonde pode acontecer que se tropece; despojar-se da tranquilidade aparente que as estruturas oferecem, estruturas certamente necessárias e importantes, mas que nunca devem obscurecer a única verdadeira força que a Igreja tem em si: Deus. Ele é a nossa força! ».
Eis um convite a « não ter medo da novidade que o Espírito Santo faz em nós, não ter medo da renovação das estruturas. A Igreja é livre. Condu-la o Espírito Santo. É o que Jesus nos ensina no Evangelho: a liberdade necessária para encontrar sempre a novidade do Evangelho na nossa vida e também nas estruturas. A liberdade de escolher odres novos para esta novidade ». Somos convidados a ser homens e mulheres audazes, de fronteira: «A nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-se como história, não como um compêndio de verdades abstratas. […] Não é preciso levar a fronteira para casa, mas viver na fronteira e ser audazes ».
Juntamente com o desafio da bem-aventurança dos pobres, o Papa convida a visitar as  fronteiras do pensamento e da cultura, a favorecer o diálogo, inclusive a nível intelectual, para darmos razão da esperança, na base de critérios éticos e espirituais, interrogando-nos sobre o que é bom. A fé nunca limita o espaço da razão, mas abre-o a uma visão integral do homem e da realidade, e defende do perigo de reduzir o homem a « material humano ».
A cultura, chamada a servir constantemente a humanidade em todas as condições, se for autêntica, rasga caminhos inexplorados, passagens que fazem respirar esperança, consolidam o sentido da vida, conservam o bem comum. Um autêntico processo cultural « faz crescer a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento; este é o modo cristão de promover o bem comum, a alegria de viver. E aqui convergem fé e razão, a dimensão religiosa com os diferentes aspectos da cultura humana: arte, ciência, trabalho, literatura ». Uma autêntica busca cultural encontra a história e abre caminhos para procurar o rosto de Deus.
Os lugares onde se elabora e comunica o saber são também os lugares onde se cria uma cultura da proximidade, do encontro e do diálogo, abaixando as defesas, abrindo as portas, construindo pontes.

12. O mundo, como rede global em que todos estamos integrados, onde nenhuma tradição local pode ambicionar ter o monopólio da verdade, onde as tecnologias têm efeitos que atingem a todos, lança um desafio constante ao Evangelho e a quem vive a vida à maneira do Evangelho.
O papa Francisco está a realizar, neste momento histórico, através de opções e modalidades de vida, uma hermenêutica viva do diálogo Deus-mundo. Introduz-nos num estilo de sabedoria, que, radicada no Evangelho e na escatologia do humano, lê o pluralismo, procura o equilíbrio, convida a habilitar a capacidade de ser responsáveis da mudança, para que a verdade do Evangelho seja comunicada cada vez melhor, enquanto nos movemos « por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias » e, conscientes destes limites, cada um de nós se torna « fraco com os fracos... tudo para todos » (1Cor 9, 22).
Somos convidados a cultivar uma dinâmica generativa, não simplesmente administrativa, para acolher os acontecimentos espirituais, presentes nas nossas comunidades e no mundo; movimentos e graça, que o Espírito realiza em cada pessoa, vista como pessoa. Somos convidados a empenhar-nos na desestruturação de modelos sem vida para narrar o humano marcado por Cristo e nunca revelado de forma absoluta nas linguagens e nos modos.
O papa Francisco convida-nos a uma sabedoria que seja sinal de uma consistência dúctil, capacidade dos consagrados de se moverem segundo o Evangelho, de atuarem e fazerem escolhas segundo o Evangelho, sem se perderem nas diversas esferas de vida, linguagens, relações e mantendo o sentido da responsabilidade, dos laços que nos ligam, da restrição dos nossos limites, da infinidade das formas como a vida se exprime. Um coração missionário é um coração que conheceu a alegria da salvação de Cristo e partilha-a como consolação no sinal do limite humano: « Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de se sujar com a lama da estrada ».
Acolhamos as solicitações que o Papa nos propõe para olhar para nós próprios e para o mundo com os olhos de Cristo, e assim ficar inquietos.

• Queria dizer-vos uma palavra, e a palavra é alegria. Onde estão os consagrados, os seminaristas, as religiosas e os religiosos, os jovens, há sempre alegria, há sempre júbilo! É a alegria do vigor, é a alegria de seguir Jesus; a alegria que nos dá o Espírito Santo, não a alegria do mundo. Há alegria! Mas, onde nasce a alegria?
• Olha no fundo do teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e interroga-te: tens um coração que aspira a algo de grande ou um coração entorpecido pelas coisas? O teu coração conservou a inquietação da procura ou permitiste que ele fosse sufocado pelos bens, que terminam por atrofiá-lo? Deus espera por ti, procura-te: o que lhe respondes? Apercebeste desta situação da tua alma? Ou dormes? Acreditas que Deus te espera ou, para ti, esta verdade não passa de « palavras »?
• Somos vítimas desta cultura do provisório. Gostaria que pensásseis nisto: como posso ser livre, como posso libertar-me desta cultura do provisório?
• Esta é uma responsabilidade, em primeiro lugar dos adultos, dos formadores: dar um exemplo de coerência aos mais jovens. Queremos jovens coerentes? Sejamos nós coerentes! Caso contrário, o Senhor nos dirá o que dizia dos fariseus ao povo de Deus: « Fazei o que dizem, mas não o que fazem! » Coerência e autenticidade!
• Podemos perguntar-nos: eu vivo inquieto por Deus, por anunciá-lo, por dá-lo a conhecer? Ou então deixo-me fascinar por aquela mundanidade espiritual que leva a fazer tudo por amor-próprio? Nós, consagrados, pensamos nos interesses pessoais, no funcionalismo das obras, no carreirismo. Mas podemos pensar em tantas coisas... Por assim dizer, « acomodei-me » na minha vida cristã, na minha vida sacerdotal, na minha vida religiosa, e até na minha vida de comunidade, ou conservo a força da inquietação por Deus, pela sua Palavra, que me leva a « sair » e ir rumo aos outros?
• Como vivemos a inquietação do amor? Cremos no amor a Deus e ao próximo, ou somos nominalistas a este propósito? Não de modo abstrato, não somente pelas palavras, mas o irmão concreto que encontramos, o irmão que está ao nosso lado! Deixamo-nos inquietar pelas suas necessidades, ou permanecemos fechados em nós mesmos, nas nossas comunidades, que com frequência são para nós « comunidades-comodidades »?
• Este é um bom caminho para a santidade! Não falar mal dos outros. « Mas, padre, há problemas... »: di-lo ao superior, di-lo à superiora, ao bispo, que pode remediar. Não o digas a quem nada pode fazer. Isto é importante: fraternidade! Mas diz-me, tu falarás mal da tua mãe, do teu pai, dos teus irmãos? Nunca. E porque o fazes na vida consagrada, no seminário, na vida presbiteral? Só isto: pensai, pensai... Fraternidade! Este amor fraterno!
• Aos pés da cruz, Maria é a mulher da dor e, ao mesmo tempo, da vigilante espera de um mistério, maior que a dor, que está para se cumprir. Tudo parece realmente acabado; toda a esperança poderíamos dizer que se apagou. Também ela, naquele momento, poderia ter exclamado, recordando as promessas da anunciação: não se cumpriram, fui enganada. Mas não o disse. Contudo ela, bem-aventurada porque acreditou, desta sua fé vê brotar um futuro novo e aguarda com esperança o amanhã de Deus. Às vezes, penso: nós sabemos esperar o amanhã de Deus? Ou queremos o hoje? O amanhã de Deus é para ela o amanhecer da Páscoa, daquele primeiro dia da semana. Far-nos-á bem pensar, em contemplação, no abraço do Filho com a Mãe. A única lâmpada acesa no sepulcro de Jesus é a esperança da Mãe, que naquele momento é a esperança de toda a Humanidade. Pergunto a mim e a vós: nos mosteiros, esta lâmpada ainda está acesa? Nos mosteiros, espera-se o amanhã de Deus?
• A inquietação do amor impele-nos sempre a ir ao encontro do outro, sem esperar que seja o outro a manifestar a sua necessidade. A inquietação do amor oferece-nos a dádiva da fecundidade pastoral, e nós devemos perguntar-nos, cada um de nós: como está a minha fecundidade espiritual, a minha fecundidade pastoral?
• Uma fé autêntica exige sempre um desejo profundo de mudar o mundo. Eis a pergunta que nos devemos fazer: temos também nós grandes visões e estímulos? Somos também nós audazes? O nosso sonho voa alto? O zelo devora-nos (cf. Sl 69, 10), ou somos medíocres e satisfazemo-nos com as nossas programações apostólicas de laboratório? 

13. « Alegra-te, cheia de graça» (Lc 1, 28). «A saudação do Anjo a Maria constitui um convite à alegria, a um júbilo profundo; anuncia o fim da tristeza […]. Trata-se de uma saudação que marca o início do Evangelho, da Boa-Nova »
Junto a Maria, a alegria expande-se: o Filho que traz no seio é o Deus da alegria, do júbilo que contagia, que envolve. Maria abre de par em par as portas do coração e corre para Isabel.
« Feliz de realizar o seu desejo, delicada no seu dever, solícita na sua alegria, apressou-se a dirigir-se para a montanha. Onde, se não para os cimos, devia solicitamente tender aquela que já estava cheia de Deus? » 
Dirige-se « apressadamente » (Lc 1, 39) para levar ao mundo o feliz anúncio, a todos a alegria irreprimível que acolhe no seio: Jesus, o Senhor. Apressadamente: não é apenas a velocidade com que Maria se move. Exprime-nos a sua diligência, a atenção solícita com que enfrenta a viagem, o seu entusiasmo.
« Eis a serva do Senhor » (Lc 1, 38). A serva do Senhor corre apressadamente, para se tornar criada dos seres humanos.
Em Maria, é a Igreja toda que caminha junta: na caridade de quem se move ao encontro daquele que é mais frágil; na esperança de quem sabe que será acompanhado neste seu andar, e na fé de quem tem um dom especial a partilhar.
Em Maria, cada um de nós, levado pelo vento do Espírito, vive a própria vocação a ir!
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir
com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da Terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivo,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Ámen. Aleluia!

Roma, 2 de fevereiro de 2014
Festa da Apresentação do Senhor


João Braz Card. de Aviz
Prefeito
José Rodríguez Carballo, O.F.M.
Arcebispo Secretário