sábado, 20 de dezembro de 2014

O MUNDO INTEIRO ESPERA A RESPOSTA DE MARIA

Ouviste, ó Virgem, que vais conceber e dar à luz um filho, não por obra de homem – tu ouviste – mas do Espírito Santo. O Anjo espera tua resposta: já é tempo de voltar para Deus que o enviou. Também nós, Senhora, miseravelmente esmagados por uma sentença de condenação, esperamos tua palavra de misericórdia.

Eis que te é oferecido o preço de nossa salvação; se consentes, seremos livres. Todos fomos criados pelo Verbo eterno, mas caímos na morte; com uma breve resposta tua seremos recriados e novamente chamados à vida.

Ó Virgem cheia de bondade, o pobre Adão, expulso do paraíso com a sua mísera descendência, implora a tua resposta; Abraão a implora, Davi a implora. Os outros patriarcas, teus antepassados, que também habitam a região da sombra da morte, suplicam esta resposta. O mundo inteiro a espera, prostrado a teus pés.

E não é sem razão, pois de tua palavra depende o alívio dos infelizes, a redenção dos cativos, a liberdade dos condenados, enfim, a salvação de todos os filhos de Adão, de toda a tua raça.

Apressa-te, ó Virgem, em dar a tua resposta; responde sem demora ao Anjo, ou melhor, responde ao Senhor por meio do Anjo. Pronuncia uma palavra e recebe a Palavra; profere a tua palavra e concebe a Palavra de Deus; dize uma palavra passageira e abraça a Palavra eterna.

Por que demoras? Por que hesitas? Crê, consente, recebe. Que tua humildade se encha de coragem, tua modéstia de confiança. De modo algum convém que tua simplicidade virginal esqueça a prudência. Neste encontro único, porém, Virgem prudente, não temas a presunção. Pois, se tua modéstia no silêncio foi agradável a Deus, mais necessário é agora mostrar tua piedade pela palavra.

Abre, ó Virgem santa, teu coração à fé, teus lábios ao consentimento, teu seio ao Criador. Eis que o Desejado de todas as nações bate à tua porta. Ah! se tardas e ele passa, começarás novamente a procurar com lágrimas aquele que teu coração ama! Levanta-te, corre, abre. Levanta-te pela fé, corre pela entrega a Deus, abre pelo consentimento. Eis aqui, diz a Virgem, a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,38).

Das Homilias em louvor da Virgem Mãe, de São Bernardo, abade (século XII)

domingo, 16 de novembro de 2014

Carta Circular aos Consagrados e Consagradas do Magistério do Papa Francisco








ANO DA VIDA CONSAGRADA



ALEGRAI-VOS


« Queria dizer-vos uma palavra, e a palavra é alegria.
Onde quer que haja consagrados, aí está a alegria!
».
Papa Francisco

Caríssimos Irmãos e Irmãs,
1. «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo, nasce e renasce sem cessar a alegria » .
O início da Evangelii gaudium soa, na linha do magistério do papa Francisco, com surpreendente vitalidade, apelando ao mistério admirável da Boa-Nova que, ao ser acolhida no coração de uma pessoa, transforma a sua vida. É-nos contada a parábola da alegria: o encontro com Jesus acende em nós a beleza originária, a beleza do rosto no qual resplandece a glória do Pai (cf. 2Cor 4, 6), no frutto da alegria.
Esta Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica convida-vos a refletir sobre o tempo de graça que nos é dado viver, sobre o especial convite que o Papa dirige à vida consagrada.
Acolher tal magistério significa renovar a vida segundo o Evangelho, não no sentido de radicalidade entendida como modelo de perfeição e, muitas vezes, de separação, mas no sentido de adesão toto corde ao encontro de salvação que transforma a vida: « Trata-se de deixar tudo para seguir o Senhor. Não, não quero dizer radical. A radicalidade evangélica não é só para os religiosos: a todos se exige. Mas os religiosos seguem o Senhor de modo especial, de modo profético. Espero de vós esse testemunho. Os religiosos devem ser homens e mulheres capazes de despertar o mundo ».
Dentro das limitações humanas, nas preocupações do dia a dia, os consagrados e as consagradas vivem a fidelidade, dão razão da alegria que vivem, convertem-se em testemunho luminoso, anúncio eficaz, companhia e proximidade para com as mulheres e homens do nosso tempo que procuram a Igreja como casa paterna. Francisco de Assis, tomando o Evangelho como forma de vida, « fez crescer a fé, renovou a Igreja; e, ao mesmo tempo, renovou a sociedade, tornando-a mais fraterna, mas sempre com o Evangelho, com o testemunho. Pregai sempre o Evangelho e, se for necessário, pregai-o também com as palavras! ».
Muitas são as sugestões que nascem da escuta das palavras do Santo Padre, mas interpela-nos particularmente a simplicidade absoluta com a qual o papa Francisco propõe o seu magistério, conformando-se com a genuinidade desarmante do Evangelho. Palavra sine glossa, espalhada com o gesto amplo do bom semeador que, cheio de confiança, não faz discriminação de terreno.
Um convite autorizado que nos é dirigido com plena confiança; um convite a renunciarmos às argumentações institucionais e às justificações pessoais; uma palavra provocadora que questiona o nosso viver, por vezes entorpecido e sonolento, e com frequência indiferente ao desafio: « Se tivésseis fé como um grão de mostarda » (Lc 17, 5). Um convite que nos incentiva a elevar o espírito para darmos razão ao Verbo que habita no meio de nós, ao Espírito que cria e renova constantemente a sua Igreja.
Esta Carta surge a partir deste convite e pretende dar início a uma reflexão partilhada, ao mesmo tempo que se apresenta como simples meio para um confronto leal entre o Evangelho e Vida. Este Dicastério desencadeia assim um percurso comum, lugar de reflexão fraterna, pessoal, institucional, rumo a 2015, ano que a Igreja dedica à vida consagrada. Alimentamos o desejo de que ousadas decisões evangélicas venham a ser postuladas e se produzam frutos de renovação e de fecunda alegria: «O primado de Deus é, para a existência humana, plenitude de significado e de alegria, porque o ser humano é feito para Deus e não descansa enquanto não encontrar nele a paz » .

Alegrai-vos com Jerusalém, rejubilai com ela, vós todos que a amais; regozijai-vos com ela, vós todos que estáveis de luto por ela.
Porque assim diz o Senhor: « Vou fazer com que a paz corra para Jerusalém como um rio, e a riqueza das nações, como uma torrente transbordante. Os seus filhinhos serão levados ao colo e acariciaclos sobre os seus regaços.
Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei: em Jerusalém sereis consolados.
Ao verdes isto, os vossos corações pulsarão de alegria, e os vossos ossos retomarão vigor, como erva fresca. A mão do Senhor manifestar-se-á aos seus servos ».
Isaías 66, 10.12-14.

2. Com a palavra alegria (em hebraico: s´imh. â/s´amah. , gyl) a Sagrada Escritura pretende exprimir uma série de experiências coletivas e pessoais, particularmente ligadas ao culto religioso e às festas, e destinadas a reconhecer o sentido da presença de Deus na história de Israel.
Na Bíblia, há treze verbos e substantivos diferentes para descrever a alegria de Deus, das pessoas e da própria criação, no diálogo da salvação.
No Antigo Testamento, é nos Salmos e no profeta Isaías que estes termos aparecem mais vezes. Com uma variação linguística criativa e original, surge com frequência o convite à alegria e proclama-se a alegria da proximidade de Deus, alegria por tudo o que Ele criou e fez. Nos Salmos encontramos, centenas de vezes, as expressões mais eficazes para indicar, juntamente com a alegria, quer o fruto da presença benevolente de Deus e os ecos jubilosos que esta provoca, quer a afirmação da grande promessa que ilumina o horizonte futuro do povo. No que diz respeito ao profeta Isaías, a segunda e a terceira partes do seu livro estão, precisamente, ritmadas por esse frequente apelo à alegria, orientado para o futuro: será superabundante (cf. Is 9, 2); o céu, o deserto e a terra exultarão de alegria (Is 35, 1; 44, 23; 49, 13); os prisioneiros libertados chegarão a Jerusalém, gritando de alegria (Is 35,9s.; 51, 11).
No Novo Testamento, o termo mais frequente está ligado à raiz char (chàirein, charà), mas também se encontram outros termos como agalliáomai, euphrosy´ne, que geralmente comportam um júbilo total, abarcando simultaneamente o passado e o futuro. A alegria é o dom messiânico por excelência, como o próprio Jesus promete: «A minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa » (Jo 15, 11; 16, 24; 17, 13). Lucas, a partir dos acontecimentos que antecedem o nascimento do Salvador, assinala o jubiloso difundir-se da alegria (cf. Lc 1, 14.44.47; 2, 10; cf. Mt 2, 10). Esta acompanha a difusão da Boa-Nova como um efeito que se expande (cf. Lc 10, 17; 24, 41.52) e que é sinal típico da presença e implantação do Reino (cf. Lc 15, 7.10.32; At 8, 39; 11, 23; 15, 3; 16, 34; cf. Rm 15, 10-13; etc.).
Para Paulo, a alegria é um fruto do Espírito (cf. Gl 5, 22) e uma nota típica e estável do Reino (cf. Rm 14, 17), que se consolida também através da tribulação e das provas (cf. 1Ts 1, 6). Na oração, na caridade, na constante ação de graças deve encontrar-se a fonte da alegria (cf. 1Ts 5, 16; Fl 3, 1; Cl 1,11s.): nas tribulações, o Apóstolo dos Gentios sente-se cheio de alegria e participante da glória que todos esperamos (cf. 2Cor 6, 10; 7, 4; Cl 1, 24). O triunfo final de Deus e as núpcias do Cordeiro completarão toda a alegria e júbilo (cf. Ap 19, 7), fazendo estalar um Aleluia cósmico (Ap 19, 6).
Vejamos o sentido do texto: « Alegrai-vos com Jerusalém; rejubilai com ela, vós todos que a amais. Regozijai-vos com ela » (Is 66, 10). Trata-se do final da terceira parte do profeta Isaías; os capítulos 65 e 66 de Isaías estão intimamente unidos, completando-se mutuamente, como era evidente já na conclusão da segunda parte de Isaías (capítulos 54 e 55).
Em ambos os capítulos é evocado o passado, por vezes até com imagens cruas: são um convite a esquecê-lo, porque Deus quer fazer brilhar uma nova luz, uma confiança que curará infidelidades e crueldades sofridas. A maldição, fruto da não observância da Aliança, desaparecerá, porque Deus quer fazer de « Jerusalém um motivo de júbilo, e do seu povo uma fonte de alegria » (cf. Is 65, 18). Saberão por experiência que a resposta de Deus virá ainda antes de a súplica ser formulada (cf. Is 65, 24). Este é o contexto que continuará também nos primeiros versículos de Isaías 66, aflorando aqui e além, e evidenciando obtusidade de coração e de ouvidos perante a bondade do Senhor e a sua Palavra de esperança.
É muito sugestiva a imagem de Jerusalém mãe, inspirada nas promessas de Isaías 49, 18-29 e 54, 1-3: a terra de Judá enche-se com os que regressam da dispersão, depois da humilhação. Dir-se-ia que os rumores da « libertação » « engravidaram » Sião de nova vida e esperança. Deus, o Senhor da vida, levará até ao fim a gestação, fazendo nascer sem sofrimento os novos filhos. Assim, Sião-mãe fica rodeada de novos filhos, amamentando-os a todos com abundância e ternura. Uma imagem dulcíssima, fascinante para Santa Teresa de Lisieux, que nela encontrou uma decisiva chave de interpretação da sua espiritualidade.
Um conjunto de vocábulos intensos: alegrai-vos, exultai, transbordai; e também consolações, delícia, abundância, prosperidade, carícias, etc. A relação de fidelidade e de amor tinha falhado, caíra-se na tristeza e na esterilidade; agora, o poder e a santidade de Deus tornavam a dar sentido e plenitude de vida e de felicidade. Estas exprimem-se em termos que têm a sua raiz nos afetos de todo o ser humano, e que provocam sensações únicas de ternura e segurança.
Delicado e verdadeiro perfil de um Deus que vibra com entranhas maternas e com intensas emoções contagiantes; uma alegria vinda do coração (cf. Is 66, 14) que, a partir de Deus – rosto materno e braço que ergue –, e se difunde num povo desfigurado por mil humilhações, e, por isso, com ossos frágeis; uma transformação gratuita que festivamente se estende a « novos céus e nova terra » (cf. Is 66, 22), para que todos os povos conheçam a glória do Senhor, fiel e redentor.

3. « Esta é a beleza da consagração: é a alegria, a alegria... ». A alegria de levar a todos a consolação de Deus. São palavras do papa Francisco no encontro com os seminaristas, os noviços e noviças. « Não há santidade na tristeza », continua o Santo Padre, « não andeis tristes como os que não têm esperança », escrevia São Paulo (1Ts 4, 13).
A alegria não é um adorno inútil, mas exigência e fundamento da vida humana. Nas preocupações de cada dia, todo o homem e mulher procura alcançar a alegria e permanecer nela com todo o seu ser.
No mundo há, muitas vezes, um déficit de alegria. Não somos chamados a realizar gestos épicos nem a proclamar palavras altissonantes, mas a testemunhar a alegria que brota da certeza de sentir-se amado, da confiança de ser salvo.
A nossa memória curta e a nossa experiência fraca impedem-nos muitas vezes de procurar as « terras da alegria », onde saborear o reflexo de Deus. Temos mil e um motivos para viver na alegria. A sua raiz alimenta-se da escuta crente e perseverante da Palavra de Deus. Na escola do Mestre, escuta-se o « esteja em vós a minha alegria e a vossa alegria seja completa » (Jo 15, 11), e treinamo-nos com exercícios de alegria perfeita.
«A tristeza e o medo devem dar lugar à alegria: “Alegrai-vos... exultai... transbordai de alegria” – diz o profeta (66, 10). É um grande convite à alegria. […] Cada cristão, mas sobretudo nós, somos chamados a levar esta mensagem de esperança, que dá serenidade e alegria: a consolação de Deus, a sua ternura para com todos. Mas só o poderemos fazer, se experimentarmos, nós primeiro, a alegria de ser consolados por Ele, de ser amados por Ele. […] Existem pessoas consagradas que têm medo da consolação de Deus e se amofinam, porque têm medo dessa ternura de Deus. Mas não tenhais medo. Não tenhais medo. O nosso Deus é o Senhor da consolação, o Senhor da ternura. O Senhor é pai e Ele disse que procederá conosco como faz uma mãe com o seu filho – com ternura. Não tenhais medo da consolação do Senhor ».

4. «Ao chamar-vos, Deus diz-vos: “És importante para mim, Eu amo-te; conto contigo”. Jesus diz isto a cada um de nós! Daqui nasce a alegria! A alegria do momento no qual Jesus olhou para mim. Compreender e sentir isto é o segredo da nossa alegria. Sentir-se amado por Deus, sentir que, para Ele, nós não somos números, mas pessoas; e sentir que é Ele que nos chama ».
O papa Francisco leva-nos a olhar para o fundamento espiritual da nossa humanidade, para vermos o que nos é dado gratuitamente por livre soberania divina e livre resposta humana:
« Então Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu: “Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me” » (Mc 10, 21).
O Papa faz memória: «Na Última Ceia, Jesus dirige-se aos Apóstolos com estas palavras:
“Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi” (Jo 15, 16); estas palavras recordam a todos, não só a nós sacerdotes, que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus. Foi Cristo que vos chamou a segui-lo na vida consagrada, e isto significa realizar constantemente um “êxodo” de vós mesmos para centrardes a vossa existência em Cristo e no seu Evangelho, na vontade de Deus, despojando-vos dos vossos projetos, a fim de poderdes afirmar com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20) ».
O Papa convida-nos a uma peregrinação ao passado, um caminho sapiencial para nos encontrarmos nas estradas da Palestina ou junto da barca do humilde pescador da Galileia; convida-nos a contemplar os inícios de um caminho, ou melhor, de um acontecimento que, tendo sido inaugurado por Cristo, nos leva a deixar as redes na margem, o banco dos impostos na beira da estrada, as veleidades do zelote entre as intenções do passado. Todos meios desapropriados para estar com Ele.
Convida-nos a parar algum tempo, como peregrinação interior, diante do horizonte da primeira hora, onde os espaços têm o calor da relação amiga, a inteligência é levada a abrir-se ao mistério, a decisão estabelece que é bom pôr-se no seguimento daquele Mestre que só tem « palavras de vida eterna » (cf. Jo 6, 68). Convida-nos a fazer de toda a « existência uma peregrinação de transformação no amor ».
O papa Francisco chama-nos a deter o nosso espírito no fotograma da partida: «A alegria do momento no qual Jesus olhou para mim»; a evocar significados e exigências subentendidos na nossa vocação: «É a resposta a um chamamento, a um chamamento de amor ». Estar com Cristo requer que partilhemos com Ele a vida, opções, obediência de fé, bem-aventurança dos pobres, radicalidade do amor.
Trata-se de renascer vocacionalmente. « Convido todo o cristão […] a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar dia a dia sem cessar ».
Paulo leva-nos a essa visão fundamental: « Ninguém pode pôr outro alicerce diferente do que já foi posto » (1Cor 3, 11). O termo vocação indica este dado gratuito, como um depósito de vida que não cessa de renovar a humanidade e a Igreja no mais profundo do seu ser.
Na experiência da vocação, o próprio Deus é o sujeito misterioso do chamamento. Ouvimos uma voz que nos chama à vida e ao discipulado pelo Reino. O papa Francisco, ao recordá-lo – « tu és importante para mim» –, usa o discurso direto, na primeira pessoa, de modo a que a consciência desperta. Chama-me a ser consciente da minha ideia, do meu juízo, para pedir comportamentos coerentes com a consciência de mim próprio, com o chamamento que sinto, o meu chamamento pessoal: « Gostaria de dizer a quantos se sentem indiferentes a Deus, à fé; a quantos estão distantes de Deus, ou a quem o abandonou; também a nós, com as nossas “distâncias” e os nossos “abandonos” de Deus, talvez pequenos, mas demasiado frequentes na vida quotidiana: Olha no fundo do teu coração, olha no íntimo de ti mesmo e interroga-te: tens um coração que aspira a algo de grande, ou um coração entorpecido pelas coisas? O teu coração conservou a inquietação da procura, ou permitiste que ele fosse sufocado pelos bens que, no fim, o atrofiam? ».
A relação com Jesus Cristo precisa de ser alimentada com a inquietação da procura; torna-nos conscientes da gratuidade do dom da vocação e ajuda-nos a justificar as razões que levaram à opção inicial, e que permanecem na perseverança: « Deixar-se conquistar por Cristo significa estar sempre orientado para aquilo que está à minha frente, rumo à meta que é Cristo (cf. Fl 3, 14) ». Permanecer constantemente à escuta de Deus requer que estas perguntas se tornem as coordenadas que marcam o nosso tempo quotidiano.
Este mistério indizível que trazemos dentro de nós e que participa do inefável mistério de Deus só pode ser interpretado à luz da fé: «A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama pelo nome » e, « enquanto resposta a uma Palavra que precede, será sempre um ato de memória; contudo, esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de uma promessa, torna-se capaz de se abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho ». «A fé contém precisamente a memória da história de Deus conosco; a memória do encontro com Deus, que toma a iniciativa, que cria e salva, que nos transforma; a fé é memória da sua Palavra que inflama o coração, das suas ações salvíficas, pelas quais nos dá vida, purifica, cuida de nós e alimenta. […] Quem traz em si a memória de Deus, deixa-se guiar pela memória de Deus em toda a sua vida, e sabe despertá-la no coração dos outros ». Memória de ser chamado aqui e agora.

5. O Papa pede-nos para relermos a nossa história pessoal e a verificarmos no olhar de amor de Deus, porque, se a vocação é sempre iniciativa sua, cabe-nos a livre adesão à economia divino-humana, como relação de vida no ágape, caminho de discipulado, « luz no caminho da Igreja ». Na vida no Espírito não há tempos acabados; ela abre-se constantemente ao mistério quando faz discernimento para conhecer o Senhor e captar a realidade a partir dele. Ao chamar-nos, Deus faz-nos entrar no seu repouso e pede-nos que repousemos nele, como contínuo processo de conhecimento de amor. Ecoa em nós a Palavra « andas inquieta e preocupada com muitas coisas » (Lc 10, 41). Na via amoris progride-se renascendo: a velha criatura renasce para uma nova forma. « Por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura » (2Cor 5, 17).
O papa Francisco dá um nome a este renascer: « Esta estrada tem um nome, um semblante: o rosto de Jesus Cristo. É Ele que nos ensina a tornarmo-nos santos. É Ele que, no Evangelho, nos indica o caminho: a via das bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-12). Esta é a vida dos Santos: pessoas que, por amor a Deus, na sua vida não lhe puseram condições ».
A vida consagrada é chamada a encarnar a Boa-Nova, no seguimento de Cristo, o Crucificado ressuscitado; a fazer próprio o « modo de existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado em relação ao Pai e aos irmãos ». Concretamente, é assumir o seu estilo de vida, adotar as suas atitudes interiores, deixar-se invadir pelo seu espírito, assimilar a sua lógica surpreendente e a sua escala de valores, partilhar os seus risos e as suas esperanças: « Guiados pela certeza humilde e feliz de quem foi encontrado, alcançado e transformado pela Verdade que é Cristo, e não pode deixar de anunciá-la ».
O permanecer em Cristo permite-nos colher a presença do Mistério que habita em nós e nos dilatar o coração segundo a medida do seu coração de Filho. Quem permanece no seu amor, como o ramo ligado à videira (cf. Jo 15, 1-8), entra na familiaridade com Cristo e produz fruto: « Permanecer em Jesus! Permanecer ligado a Ele, dentro dele, com Ele, falando com Ele ».
« Cristo é o selo na fronte, é o selo no coração: na fronte, porque o professamos sempre; no coração, porque o amamos sempre; é o selo no braço, porque atuamos sempre ». A vida consagrada, com efeito, é um constante chamamento a seguir Cristo e a imitá-lo. « Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total entrega, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal ».
O encontro com o Senhor põe-nos em movimento, impele-nos a sair da autorreferencialidade . A relação com o Senhor não é estática nem intimista: «Quem coloca Cristo no centro da sua vida, descentraliza-se! Quanto mais te unes a Jesus e mais Ele se torna o centro da tua vida, tanto mais Ele te faz sair de ti mesmo, te descentraliza e abre aos outros ». « Não estamos no centro; estamos, por assim dizer, “deslocados”, estamos ao serviço de Cristo e da Igreja ».
A vida cristã é determinada por verbos de movimento, mesmo quando vivida na dimensão monástica e contemplativo-claustral; é uma contínua procura.
« Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se estiver convencido, por experiência própria, de que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não o conhecer; não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando; não é a mesma coisa poder escutá-lo ou ignorar a sua Palavra; não é a mesma coisa poder contemplá-lo, adorá-lo, descansar nele, ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho, em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena, e, com Ele, é mais fácil encontrar sentido para cada coisa ».
O papa Francisco exorta-nos à inquietação da procura, como aconteceu com Agostinho de Hipona: uma « inquietação do coração que o leva ao encontro pessoal com Cristo; que o leva a compreender que aquele Deus que ele procurava longe de si é o Deus próximo de cada ser humano, o Deus próximo do nosso coração, mais íntimo a nós do que nós mesmos ». É uma procura que continua: « Agostinho não se detém, não se acomoda, não se fecha em si mesmo, como aquele que já chegou à meta, mas continua o caminho. A inquietação da busca da verdade, da busca de Deus, torna-se inquietação de o conhecer cada vez mais e de sair de si mesmo para o dar a conhecer aos outros. É precisamente a inquietação do amor ».

6. Quem encontrou o Senhor e o segue com fidelidade é um mensageiro da alegria do Espírito.
« Só graças a esse encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade ». Quem é chamado é convocado para si mesmo, isto é, para o seu poder ser. Talvez possamos dizer que a crise da vida consagrada passa também pela incapacidade de reconhecer esse profundo chamamento, mesmo naqueles que já vivem essa vocação.
Vivemos uma crise de fidelidade, entendida como adesão consciente a um chamamento que é um percurso, um caminho, desde o seu início misterioso até ao seu misterioso fim.
Talvez se esteja também numa crise de humanização. Estamos a viver os limites de uma coerência total, feridos pela incapacidade de realizar, no tempo, a nossa vida como vocação unitária e caminho fiel.
Um caminho quotidiano, pessoal e fraterno, marcado pelo descontentamento, pela amargura que nos fecha na tristeza, como que numa permanente saudade, por estradas inexploradas e sonhos por realizar, torna-se um caminho solitário. A nossa vida, chamada à relação na construção do amor, pode transformar-se numa charneca desabitada. Somos convidados, em qualquer idade, a revisitar o centro profundo da vida pessoal, onde encontram significado e verdade as motivações do nosso viver com o Mestre, discípulos e discípulas do Mestre.
A fidelidade é consciência do amor que nos orienta para o Tu de Deus e para qualquer outra pessoa, de maneira constante e dinâmica, enquanto sentimos em nós a vida do Ressuscitado:
«Os que se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento ».
O discipulado fiel é graça e exercício de amor, exercício de caridade oblativa: « Quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor ».
Perseverar até ao Gólgota, sentir as dilacerações das dúvidas e do renegar, alegrar-se com a maravilha e com a estupefação da Páscoa até à manifestação do Pentecostes e à evangelização aos povos, são etapas da fidelidade alegre porque quenótica, vivida durante a vida inteira, mesmo na prova do martírio e, ao mesmo tempo, participante da vida ressuscitada de Cristo: «É da Cruz, supremo ato de misericórdia e de amor, que se renasce como nova criatura (Gl 6, 15) ».
No lugar teologal em que Deus, revelando-se, nos revela a nós mesmos, o Senhor pede-nos, portanto, para voltarmos a procurar, fides quaerens: « Procura a justiça, a fé, o amor e a paz com todos os que, de coração puro, invocam o Senhor » (2Tm 2, 22).
A peregrinação interior começa na oração: «A primeira coisa necessária para um discípulo é estar com o Mestre, ouvi-lo, aprender dele. E isto é sempre válido, é um caminho que dura a vida inteira. […] Se, no nosso coração, não há o calor de Deus, do seu amor, da sua ternura, como podemos nós, pobres pecadores, inflamar o coração dos outros? ». Este itinerário dura a vida inteira, enquanto o Espírito Santo, na humildade da oração, nos convence do senhorio de Cristo em nós: « Todos os dias, o Senhor chamanos a segui-lo, corajosa e fielmente; fez-nos o grande dom de nos escolher como seus discípulos; convida-nos a anunciá-lo jubilosamente como o Ressuscitado, mas pede-nos para o fazermos, no dia a dia, com a palavra e o testemunho da nossa vida, no quotidiano. O Senhor é o único, o único Deus da nossa vida e convida-nos a despojar-nos dos numerosos ídolos e adorá-lo só a Ele ».
O Papa apresenta a oração como a fonte da fecundidade missionária: « Cultivemos a dimensão contemplativa, mesmo no turbilhão dos compromissos mais urgentes e pesados. E quanto mais a missão vos chamar para irdes às periferias existenciais, tanto mais o vosso coração se mantenha unido ao de Cristo, cheio de misericórdia e de amor ».
O estar com Jesus leva a ter um olhar contemplativo da história, para vermos e escutarmos em toda a parte a presença do Espírito e, de forma privilegiada, discernirmos a sua presença, a fim de vivermos o tempo como tempo de Deus.
Quando falta um olhar de fé, « a vida perde gradualmente sentido, o rosto dos irmãos torna-se opaco, impossibilitando descobrir nele o rosto de Cristo; os acontecimentos da história tornam-se ambíguos, senão mesmo vazios de esperança».
A contemplação abre-nos à atitude profética. O profeta é um homem « que tem os olhos penetrantes e que escuta e diz as palavras de Deus; […] um homem de três tempos: promessa do passado, contemplação do presente, coragem para indicar o caminho do futuro ».
Por fim, a fidelidade no discipulado passa e é comprovada pela experiência da fraternidade, lugar teológico, no qual somos chamados a apoiar-nos no sim jubiloso do Evangelho: «É a Palavra de Deus que suscita a fé, que a alimenta e regenera. É a Palavra de Deus que sensibiliza os corações, que os converte a Deus e à sua lógica, que é tão diferente da nossa; é a Palavra de Deus que renova continuamente as nossas comunidades ».
O Papa convida-nos, portanto, a renovar e qualificar com alegria e paixão a nossa vocação, porque o ato totalizante do amor é um processo constante: « Amadurece, amadurece, amadurece », num progresso permanente em que o sim da nossa vontade à Sua une vontade, intelecto e sentimento. «O amor nunca está “concluído” e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si próprio ».


Consolai, consolai o meu povo,
diz o vosso Deus.
Falai ao coração de Jerusalém.
Isaías 40, 1-2
À escuta
7. Com uma peculiaridade estilística, que voltará a encontrar-se mais adiante (cf. Is 51, 17; 52, 1: « Desperta, desperta! »), os oráculos da segunda parte de Isaías (40-55) lançam o apelo a ir em ajuda de Israel exilado, que tende a fechar-se no vazio de uma memória falhada. O contexto histórico pertence claramente à fase do prolongado exílio do povo em Babilônia (587-538 a.C.), com toda a consequente humilhação e o sentido de impotência daí resultante. Todavia, a desagregação do Império Assírio sob a pressão da nova potência emergente, a persa, guiada pelo astro nascente que era Ciro, leva o profeta a intuir que poderia vir daí uma libertação inesperada; o que, de facto, sucederá. O profeta, sob a inspiração de Deus, dá voz pública a essa possibilidade, interpretando os movimentos políticos e militares como ação guiada misteriosamente por Deus através de Ciro, e proclama que a libertação está próxima e o regresso à terra dos pais está iminente.
As palavras que Isaías emprega – consolai... falai ao coração – encontram-se com uma certa frequência no Antigo Testamento; têm especial relevância as passagens onde se encontram diálogos de ternura e afeto. Como quando Rute reconhece que Booz « a consolou e lhe falou ao coração » cf. Rt 2, 12); ou então, na famosa página ele Oséias, que diz à sua esposa (Gomer) querer atraí-la ao deserto para lhe « falar ao coração » (cf. Os 2, 16-17), em ordem a uma nova estação de fidelidade. Mas também há outros paralelismos semelhantes, como o diálogo de Siquém, filho de Hamor, enamorado de Dina (cf. Gn 34, 1-5) ou o do levita de Efraim, que fala à concubina que o abandonou (cf. Jz 19, 3).
Trata-se, portanto, de uma linguagem que deve ser interpretada no contexto do amor, e não do encorajamento; portanto, ação e palavra ao mesmo tempo delicadas e encorajadoras, mas que aludem aos laços afetivos e intensos de Deus, « esposo » de Israel. E a consolação deve ser epifania de uma pertença recíproca, jogo de intensa empatia, de comoção e ligação vital.
Não são, portanto, palavras superficiais e adoçadas, mas Misericórdia e visceralidade, preocupação, abraço que fortalece e paciente proximidade para reencontrar as estradas da confiança.

8. « Hoje, as pessoas precisam certamente de palavras, mas sobretudo têm necessidade de quem testemunhe a misericórdia, a ternura do Senhor que aquece o coração, desperta a esperança, atrai para o bem. A alegria de levar a consolação de Deus! ».
O papa Francisco confia aos consagrados e consagradas essa missão: encontrar o Senhor que nos consola como uma mãe, e consola o povo de Deus. Da alegria do encontro com o Senhor e do seu chamamento brota o serviço na Igreja, a missão: levar aos homens e mulheres do nosso tempo a consolação de Deus; testemunhar a sua misericórdia.
Na visão de Jesus, a consolação é dom do Espírito, o Paráclito, o Consolador que nos consola nas provas e acende uma esperança que não desilude. Assim, a consolação cristã torna-se conforto, encorajamento, esperança: é presença operante do Espírito (cf. Jo 14, 16-17), fruto do Espírito, e o «fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança » (Gl 5, 22).
Num mundo que vive de desconfiança, de desânimo e depressão, numa cultura em que os homens e mulheres se deixam levar por fragilidades e fraquezas, por individualismos e interesses pessoais, é-nos pedido que introduzamos a confiança na possibilidade de uma felicidade verdadeira, de uma esperança possível, que não se apoie unicamente nos talentos, nas qualidades, no saber, mas em Deus. Todos podem encontrá-lo; basta procurá-lo de coração sincero.
Os homens e mulheres do nosso tempo esperam palavras de consolação, proximidade, perdão, alegria verdadeira. Somos chamados a levar a todos o abraço de Deus, que se inclina sobre nós com ternura de mãe: consagrados, sinal de humanidade plena, facilitadores e não controladores da graça, marcados pelo sinal da consolação.

9. Testemunhas de comunhão para além das nossas maneiras de ver e dos nossos limites, somos, portanto, chamados a levar o sorriso de Deus; e a fraternidade é o primeiro e mais credível Evangelho que podemos contar. Pede-se-nos para humanizar as nossas comunidades: « Cuidai da amizade entre vós, da vida de família, do amor entre vós. E que o mosteiro não seja um purgatório, mas uma família. Os problemas existem e existirão, mas como se faz numa família, com amor, procurai uma solução com caridade; não destruais esta em nome daquela; que não haja competição. Cuidai da vida de comunidade, pois quando a vida de comunidade é vida de família, o Espírito Santo encontra-se no seio da comunidade. Sempre com um coração grande. Deixai passar, não vos vanglorieis, suportai tudo, sorri com o coração. E o sinal disto é a alegria »
A alegria consolida-se na experiência da fraternidade, qual lugar teológico, onde cada um é responsável da fidelidade ao Evangelho e do crescimento de cada um. Quando uma fraternidade se alimenta do mesmo Corpo e Sangue de Jesus, reúne-se à volta do Filho de Deus para partilhar o caminho de fé guiado pela Palavra, torna-se uma só coisa com Ele; é uma fraternidade em comunhão, que sente o amor gratuito e vive em festa, livre, alegre, cheia de coragem.
«Uma fraternidade sem alegria é uma fraternidade que se apaga. […] Uma fraternidade rica de alegria é um verdadeiro dom do Alto para os irmãos que sabem pedi-lo e que sabem aceitar-se uns aos outros, empenhando-se na vida fraterna com confiança na ação do Espírito ».
No tempo em que a fragmentação leva a um individualismo estéril e de massa, e a fraqueza das relações desagrega e asfixia a atenção pelo humano, somos convidados a humanizar as relações de fraternidade para favorecer a comunhão dos espíritos e dos corações ao estilo do Evangelho, porque « existe uma comunhão de vida entre todos aqueles que pertencem a Cristo. Uma comunhão que nasce da fé » e que faz da « Igreja, na sua verdade mais profunda, comunhão com Deus, familiaridade com Deus, comunhão de amor com Cristo e com o Pai no Espírito Santo, que se prolonga numa comunhão Fraterna ».
Para o papa Francisco, o selo da fraternidade é a ternura, uma « ternura eucarística », porque « a ternura faz-nos bem ». A fraternidade tem « uma enorme força de convocação. […] A fraternidade religiosa, mesmo com todas as diferenças possíveis, é uma experiência de amor que ultrapassa os conflitos ».

10. Somos chamados a realizar um êxodo de nós mesmos, num caminho de adoração e de serviço. « Sair pela porta para procurar e encontrar! Ter a coragem de ir contra a corrente dessa cultura eficientista, dessa cultura da rejeição. O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade e a fraternidade, são os elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana. Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro! Quero-vos quase obsessivos neste aspecto. E fazê-lo sem ser presunçosos »].
«O fantasma que se deve combater é a imagem da vida religiosa entendida como refúgio e conforto face a um mundo exterior difícil e complexo ». O Papa exorta-nos a « sair do ninho », para habitarmos na vida dos homens e mulheres do nosso tempo, e a nos entregarmos a Deus e ao próximo.
«A alegria nasce da gratuidade de um encontro! […] E a alegria do encontro com Ele e do seu chamamento faz com que não nos fechemos, mas que nos abramos; leva ao serviço na Igreja. São Tomás dizia: “Bonum est diffusivum sui” (o bem difunde-se). E a alegria também se difunde. Não tenhais medo de mostrar a alegria de haverdes respondido ao chamamento do Senhor, à sua escolha de amor, e de testemunhar o seu Evangelho no serviço à Igreja. E a alegria, a verdadeira alegria, é contagiosa; contagia... faz-nos ir em frente ».
Perante o testemunho contagioso de alegria, de serenidade, de fecundidade, o testemunho da ternura e do amor, da caridade humilde, sem prepotência, muitos sentem a necessidade de vir ver [60].
Várias vezes o papa Francisco indicou o caminho da atração, do contágio, como caminho para fazer crescer a Igreja, caminho da nova evangelização. «A Igreja deve atrair. Despertai o mundo! Sede testemunhas de um modo diferente de fazer, de agir, de viver! É possível viver diversamente neste mundo. […] Eu espero de vós um tal testemunho ».
Confiando-nos a missão de despertar o mundo, o Papa impele-nos a encontrar as histórias dos homens e mulheres de hoje à luz de duas categorias pastorais, que têm as suas raízes na novidade do Evangelho: a proximidade e o encontro, duas modalidades, através das quais o próprio Deus se revelou na história a ponto de encarnar.
Na estrada de Emaús, como Jesus com os discípulos, acolhamos na companhia quotidiana as alegrias e dores das pessoas, dando « calor ao coração », esperando com ternura os cansados, os fracos, para que o caminho feito em comum tenha em Cristo luz e significado.
O nosso caminho « amadurece até à paternidade pastoral, até à maternidade pastoral e, quando um sacerdote não é pai da sua comunidade, quando uma religiosa não é mãe de todos aqueles com os quais trabalha, torna-se triste. Eis o problema. Por isso vos digo: a raiz da tristeza na vida pastoral consiste precisamente na falta de paternidade e maternidade, que vem do viver mal esta consagração; esta, pelo contrário, deve-nos conduzir à fecundidade ».

11. Ícones vivos da maternidade e da proximidade da Igreja, vamos ao encontro dos que esperam a Palavra da consolação, inclinando-nos com amor materno e espírito paterno sobre os pobres e os fracos.
O Papa convida-nos a não privatizar o amor, mas, com a inquietação de quem procura, « procurar sempre, sem tréguas, o bem do outro, da pessoa amada ».
A crise de sentido do homem moderno e a crise económica e moral da sociedade ocidental e das suas instituições não são um acontecimento passageiro dos tempos em que vivemos, mas desenham um momento histórico de excepcional importância. Somos chamados então, como Igreja, a sair para ir às periferias geográficas, urbanas e existenciais – as do mistério do pecado, da dor, das injustiças, da miséria –, aos lugares recônditos da alma, onde cada pessoa experimenta a alegria e o sofrimento do viver « Vivemos numa cultura do desencontro, uma cultura da fragmentação, uma cultura na qual o que não me serve é jogado fora […]. Hoje, encontrar um sem-abrigo morto de frio não é notícia ». «A pobreza é uma categoria teologal porque o Filho de Deus humilhou-se, para caminhar pelas estradas. […] Uma Igreja pobre para os pobres começa por dirigir-se à carne de Cristo. Se nos fixarmos na carne de Cristo, começamos a compreender qualquer coisa, a compreender o que é esta pobreza, a pobreza do Senhor ». Viver a bem-aventurança dos pobres significa ser sinal de que a angústia da solidão e do limite é vencida pela alegria de quem é verdadeiramente livre em Cristo e aprendeu a amar.
Durante a sua visita pastoral a Assis, o papa Francisco perguntava de que devia despojar-se a Igreja. E respondia: «De qualquer ação que não é para Deus, que não é de Deus; do medo de abrir as portas para ir ao encontro de todos, sobretudo dos mais pobres, dos necessitados, dos distantes, sem esperar; certamente, não para se perder no naufrágio do mundo, mas para levar com coragem a luz de Cristo, a luz do Evangelho, também à escuridão, aonde não se vê, aonde pode acontecer que se tropece; despojar-se da tranquilidade aparente que as estruturas oferecem, estruturas certamente necessárias e importantes, mas que nunca devem obscurecer a única verdadeira força que a Igreja tem em si: Deus. Ele é a nossa força! ».
Eis um convite a « não ter medo da novidade que o Espírito Santo faz em nós, não ter medo da renovação das estruturas. A Igreja é livre. Condu-la o Espírito Santo. É o que Jesus nos ensina no Evangelho: a liberdade necessária para encontrar sempre a novidade do Evangelho na nossa vida e também nas estruturas. A liberdade de escolher odres novos para esta novidade ». Somos convidados a ser homens e mulheres audazes, de fronteira: «A nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-se como história, não como um compêndio de verdades abstratas. […] Não é preciso levar a fronteira para casa, mas viver na fronteira e ser audazes ».
Juntamente com o desafio da bem-aventurança dos pobres, o Papa convida a visitar as  fronteiras do pensamento e da cultura, a favorecer o diálogo, inclusive a nível intelectual, para darmos razão da esperança, na base de critérios éticos e espirituais, interrogando-nos sobre o que é bom. A fé nunca limita o espaço da razão, mas abre-o a uma visão integral do homem e da realidade, e defende do perigo de reduzir o homem a « material humano ».
A cultura, chamada a servir constantemente a humanidade em todas as condições, se for autêntica, rasga caminhos inexplorados, passagens que fazem respirar esperança, consolidam o sentido da vida, conservam o bem comum. Um autêntico processo cultural « faz crescer a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento; este é o modo cristão de promover o bem comum, a alegria de viver. E aqui convergem fé e razão, a dimensão religiosa com os diferentes aspectos da cultura humana: arte, ciência, trabalho, literatura ». Uma autêntica busca cultural encontra a história e abre caminhos para procurar o rosto de Deus.
Os lugares onde se elabora e comunica o saber são também os lugares onde se cria uma cultura da proximidade, do encontro e do diálogo, abaixando as defesas, abrindo as portas, construindo pontes.

12. O mundo, como rede global em que todos estamos integrados, onde nenhuma tradição local pode ambicionar ter o monopólio da verdade, onde as tecnologias têm efeitos que atingem a todos, lança um desafio constante ao Evangelho e a quem vive a vida à maneira do Evangelho.
O papa Francisco está a realizar, neste momento histórico, através de opções e modalidades de vida, uma hermenêutica viva do diálogo Deus-mundo. Introduz-nos num estilo de sabedoria, que, radicada no Evangelho e na escatologia do humano, lê o pluralismo, procura o equilíbrio, convida a habilitar a capacidade de ser responsáveis da mudança, para que a verdade do Evangelho seja comunicada cada vez melhor, enquanto nos movemos « por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias » e, conscientes destes limites, cada um de nós se torna « fraco com os fracos... tudo para todos » (1Cor 9, 22).
Somos convidados a cultivar uma dinâmica generativa, não simplesmente administrativa, para acolher os acontecimentos espirituais, presentes nas nossas comunidades e no mundo; movimentos e graça, que o Espírito realiza em cada pessoa, vista como pessoa. Somos convidados a empenhar-nos na desestruturação de modelos sem vida para narrar o humano marcado por Cristo e nunca revelado de forma absoluta nas linguagens e nos modos.
O papa Francisco convida-nos a uma sabedoria que seja sinal de uma consistência dúctil, capacidade dos consagrados de se moverem segundo o Evangelho, de atuarem e fazerem escolhas segundo o Evangelho, sem se perderem nas diversas esferas de vida, linguagens, relações e mantendo o sentido da responsabilidade, dos laços que nos ligam, da restrição dos nossos limites, da infinidade das formas como a vida se exprime. Um coração missionário é um coração que conheceu a alegria da salvação de Cristo e partilha-a como consolação no sinal do limite humano: « Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de se sujar com a lama da estrada ».
Acolhamos as solicitações que o Papa nos propõe para olhar para nós próprios e para o mundo com os olhos de Cristo, e assim ficar inquietos.

• Queria dizer-vos uma palavra, e a palavra é alegria. Onde estão os consagrados, os seminaristas, as religiosas e os religiosos, os jovens, há sempre alegria, há sempre júbilo! É a alegria do vigor, é a alegria de seguir Jesus; a alegria que nos dá o Espírito Santo, não a alegria do mundo. Há alegria! Mas, onde nasce a alegria?
• Olha no fundo do teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e interroga-te: tens um coração que aspira a algo de grande ou um coração entorpecido pelas coisas? O teu coração conservou a inquietação da procura ou permitiste que ele fosse sufocado pelos bens, que terminam por atrofiá-lo? Deus espera por ti, procura-te: o que lhe respondes? Apercebeste desta situação da tua alma? Ou dormes? Acreditas que Deus te espera ou, para ti, esta verdade não passa de « palavras »?
• Somos vítimas desta cultura do provisório. Gostaria que pensásseis nisto: como posso ser livre, como posso libertar-me desta cultura do provisório?
• Esta é uma responsabilidade, em primeiro lugar dos adultos, dos formadores: dar um exemplo de coerência aos mais jovens. Queremos jovens coerentes? Sejamos nós coerentes! Caso contrário, o Senhor nos dirá o que dizia dos fariseus ao povo de Deus: « Fazei o que dizem, mas não o que fazem! » Coerência e autenticidade!
• Podemos perguntar-nos: eu vivo inquieto por Deus, por anunciá-lo, por dá-lo a conhecer? Ou então deixo-me fascinar por aquela mundanidade espiritual que leva a fazer tudo por amor-próprio? Nós, consagrados, pensamos nos interesses pessoais, no funcionalismo das obras, no carreirismo. Mas podemos pensar em tantas coisas... Por assim dizer, « acomodei-me » na minha vida cristã, na minha vida sacerdotal, na minha vida religiosa, e até na minha vida de comunidade, ou conservo a força da inquietação por Deus, pela sua Palavra, que me leva a « sair » e ir rumo aos outros?
• Como vivemos a inquietação do amor? Cremos no amor a Deus e ao próximo, ou somos nominalistas a este propósito? Não de modo abstrato, não somente pelas palavras, mas o irmão concreto que encontramos, o irmão que está ao nosso lado! Deixamo-nos inquietar pelas suas necessidades, ou permanecemos fechados em nós mesmos, nas nossas comunidades, que com frequência são para nós « comunidades-comodidades »?
• Este é um bom caminho para a santidade! Não falar mal dos outros. « Mas, padre, há problemas... »: di-lo ao superior, di-lo à superiora, ao bispo, que pode remediar. Não o digas a quem nada pode fazer. Isto é importante: fraternidade! Mas diz-me, tu falarás mal da tua mãe, do teu pai, dos teus irmãos? Nunca. E porque o fazes na vida consagrada, no seminário, na vida presbiteral? Só isto: pensai, pensai... Fraternidade! Este amor fraterno!
• Aos pés da cruz, Maria é a mulher da dor e, ao mesmo tempo, da vigilante espera de um mistério, maior que a dor, que está para se cumprir. Tudo parece realmente acabado; toda a esperança poderíamos dizer que se apagou. Também ela, naquele momento, poderia ter exclamado, recordando as promessas da anunciação: não se cumpriram, fui enganada. Mas não o disse. Contudo ela, bem-aventurada porque acreditou, desta sua fé vê brotar um futuro novo e aguarda com esperança o amanhã de Deus. Às vezes, penso: nós sabemos esperar o amanhã de Deus? Ou queremos o hoje? O amanhã de Deus é para ela o amanhecer da Páscoa, daquele primeiro dia da semana. Far-nos-á bem pensar, em contemplação, no abraço do Filho com a Mãe. A única lâmpada acesa no sepulcro de Jesus é a esperança da Mãe, que naquele momento é a esperança de toda a Humanidade. Pergunto a mim e a vós: nos mosteiros, esta lâmpada ainda está acesa? Nos mosteiros, espera-se o amanhã de Deus?
• A inquietação do amor impele-nos sempre a ir ao encontro do outro, sem esperar que seja o outro a manifestar a sua necessidade. A inquietação do amor oferece-nos a dádiva da fecundidade pastoral, e nós devemos perguntar-nos, cada um de nós: como está a minha fecundidade espiritual, a minha fecundidade pastoral?
• Uma fé autêntica exige sempre um desejo profundo de mudar o mundo. Eis a pergunta que nos devemos fazer: temos também nós grandes visões e estímulos? Somos também nós audazes? O nosso sonho voa alto? O zelo devora-nos (cf. Sl 69, 10), ou somos medíocres e satisfazemo-nos com as nossas programações apostólicas de laboratório? 

13. « Alegra-te, cheia de graça» (Lc 1, 28). «A saudação do Anjo a Maria constitui um convite à alegria, a um júbilo profundo; anuncia o fim da tristeza […]. Trata-se de uma saudação que marca o início do Evangelho, da Boa-Nova »
Junto a Maria, a alegria expande-se: o Filho que traz no seio é o Deus da alegria, do júbilo que contagia, que envolve. Maria abre de par em par as portas do coração e corre para Isabel.
« Feliz de realizar o seu desejo, delicada no seu dever, solícita na sua alegria, apressou-se a dirigir-se para a montanha. Onde, se não para os cimos, devia solicitamente tender aquela que já estava cheia de Deus? » 
Dirige-se « apressadamente » (Lc 1, 39) para levar ao mundo o feliz anúncio, a todos a alegria irreprimível que acolhe no seio: Jesus, o Senhor. Apressadamente: não é apenas a velocidade com que Maria se move. Exprime-nos a sua diligência, a atenção solícita com que enfrenta a viagem, o seu entusiasmo.
« Eis a serva do Senhor » (Lc 1, 38). A serva do Senhor corre apressadamente, para se tornar criada dos seres humanos.
Em Maria, é a Igreja toda que caminha junta: na caridade de quem se move ao encontro daquele que é mais frágil; na esperança de quem sabe que será acompanhado neste seu andar, e na fé de quem tem um dom especial a partilhar.
Em Maria, cada um de nós, levado pelo vento do Espírito, vive a própria vocação a ir!
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir
com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da Terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivo,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Ámen. Aleluia!

Roma, 2 de fevereiro de 2014
Festa da Apresentação do Senhor


João Braz Card. de Aviz
Prefeito
José Rodríguez Carballo, O.F.M.
Arcebispo Secretário